quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

trecho de La Playa



 Escrevi isso entre 2011 e 2012, na primeira temporada que passei numa praia em Santa Catarina (qual será?). É uma espécie de memória, mas com pitadas de conto, de crônica. Na verdade, eu não sei no que se encaixa esse texto, sei que exponho algumas coisas, um pouquinho comprometedoras talvez, mas na verdadeira intenção de praticar a literatura apenas, mesmo que a referência seja a própria vida pessoal. O texto vai transcorrendo de acordo com o passar dos dias, mudando os assuntos de maneira natural.






... Após a tarde em que servi pela última vez as mesas do lugar, depois das 18h, despedi-me e me direcionei ao caminho de casa, quando do nada, assim, de repente, surge uma tempestade inesquecível, que pegou a todos de surpresa, que foi aumentando, aumentando, até se tornar uma tempestade torrencial, arrancando galhos, derrubando postes, cortando a rede elétrica, assustando a todos, realmente. E eu na estrada, no caminho para casa, no meio da pior tempestade que já cruzei a pé, sem guarda-chuva, com muito vento me empurrando ao revés, derrubando coisas à minha frente, inclusive um pequeno arbusto que veio em direção à minha cabeça, agora soando engraçado, mas que na hora fora realmente tenso. Quase uma hora de caminhada. Essa cruzada fez-me lembrar os clássicos filmes no Vietnã. Vento forte, frio, chuva, um desafio a cada passo. Claro que sem todas as bombas e todos os corpos dilacerados, mas com uma raiva, um sentimento de bravura que me invadia, me impelia a seguir adiante, pois o desafio de cruzar as estradas desertas, em meio a toda a vegetação do lugar, com toda a tempestade acontecendo, sim, me fez sentir-me um John Rambo tropical fugindo dos vietcongues, lutando pela vida. Exagero? Talvez, mas você não estava lá, você não sabe o quanto eu caminhei, só eu sei as esquinas por que passei.

 No começo eu tentei, quase que desesperadamente, me adaptar ao clima, ao “movimento” da praia, temia (acho que ainda temo um pouco) essa inconstância da vida, todos esses ciclos que vão e vem, toda a insegurança que isso traz, por isso tinha a necessidade de adaptação urgente, tão esmagadora, me tornando inseguro ao encarar a nova realidade, o novo mundo.
 Hoje acho que essa inconstância é um dos baratos da vida, claro que algumas coisas pesam por serem assim, ou por acabarem sendo. Família, amor, amizade, essas coisas não devem ser inconstantes, devem ser profundas e verdadeiras, quanto mais duradouras, melhor, porém no fim, maior também é a queda. Mas esse é o ciclo, devemos evitar a queda, trabalhar para que o próximo degrau esteja ali, pronto para o nosso pé.

 Minha necessidade de adaptação implica na minha vestimenta, no meu modo de falar, nas músicas que ouço, algo como “em Roma, aja como um romano”, porém logo esse sentimento dissipou-se, a naturalidade retorna, percebe-se que “em Roma, pense e entenda você mesmo um romano, não finja ser um”. Não finjo ser outra pessoa, me adapto, mas sigo sendo eu, eu mesmo e minhas loucuras, o pacote inteiro adaptado ao novo ciclo, adaptado mais uma vez à inconstância da existência.

 E mais uma vez acabou-se um ciclo aqui na praia, e inicia-se outro, minha namorada acabou por “quebrar os pratos” com a gerente do restaurante que trabalhava. Veja bem, o lugar é pesado, as responsáveis, duas mulheres, são namoradas, vivem juntas, nas dependências do próprio restaurante. A dona, a chefe de cozinha, a male do casal. A gerente, a female. As duas brigam como cão e gato, brigas presenciadas há três temporadas pela minha parceira. Quase sempre ocorridas na cozinha, vazando gritos e insultos até os ouvidos de algum cliente no bar. A dona construiu seu império sozinha, com garra e foco, mas isso (ou sei lá o que mais!) a deixou amarga, fria, uma alma azeda, que transtorna com a sua presença, pesa o ambiente ao seu redor. Desafortunados são seus colegas de cozinha. Já a gerente é uma pessoa meiga, quase que totalmente o oposto da chefe, porém, ela não está desde o princípio do negócio, por isso ela é a gerente, não sócia, deve satisfações como qualquer outro empregado no restaurante à megera. A pobre criatura ouve tantas reclamações que acaba surtando. Uma paranoica, que nunca deixa de exigir empenho robótico dos seus funcionários, sempre repassando as ordens da grã mestre. Porém esse transtorno do qual ela parece ser vítima, não impede que ela também se torne opressora, a tornando submissa ao tratamento que recebe, e revertendo seus infortúnios a toda equipe de produção, de atendimento. Uma relação insana, conjugal e profissional. De amor e ódio.
 Após todas essas visões de energia radicalmente negativa, depois de tantas reclamações por ela experimentadas, depois de olhares fulminantes de reprovação, quase que diários, mesmo com toda a dedicação e profissionalismo empenhados por minha namorada, assim ela desistiu, chutou o balde, abandonou tudo, relatando sua insatisfação em um simples bilhete deixado no bar do restaurante e no testemunho geral de seus colegas.
 Contudo, meu trabalho no lugar (que era afastado quase que 90% desse ambiente praticamente hostil, pois me encontrava no estacionamento, sozinho com meus livros e música, a não ser nos momentos de banheiro e lanche, que acabava por encarar a figura cadavérica medieval da chefe, mesmo ela sendo uma pessoa de beleza femininamente bela, seu rosto é feminino e belo, mas sua expressão é feia, rancorosa e masculina) foi pelos ares, junto com a demissão de minha namorada. A gerente afirmou que, por ela, continuaria sem problema algum minha função por lá, mas logo que consultou o Mefistófeles de avental, declarou que não seria mais necessária minha presença, iniciando mais uma vez a saga, a busca por mais um emprego, por uma fonte de renda, agora para nós dois, mais dois novos desempregados en La Playa.

 No entanto, esse afastamento mútuo do trabalho já nos rendeu mais bons momentos juntos. Em um deles, fizemos uma trilha espetacular entre duas praias próximas aqui da região. Uma trilha em uma encosta sobre o mar, cruzando rochas altas, rochas que recebem a fúria do oceano, levantando a água a metros de altura, também com espinhos e animais de peçonha. Tudo sob um belo e escaldante sol, contemplando uma beleza singular. 45 minutos de caminhada até a praia ponto de partida da trilha, mais uns 45 minutos também pela trilha, onde nos demos com outra magnífica praia, também de muitos turistas gringos, gente rica e fútil por todo o lado, mas todos um, uma mesma massa de gente sob o mesmo céu azul, desta terra abençoada por paisagens tão belas e inspiradoras.
 Ainda antes de retornarmos pela mesma trilha, ali jogados no chão estávamos quando visualizei uma garotinha e seu pai. Ao nosso lado, a garotinha tinha um olhar triste e distante, devia ter uns 9 anos. Gordinha, sozinha, logo me identifiquei com ela, senti um pesar imenso naquilo, me vi também sozinho, gordinho, branquelo na praia, onde todos pulam, gritam e brincam, e eu sigo sozinho, ou sozinha, vendo tudo como um espectador da felicidade alheia. Tive vontade de puxar papo com ela, perguntar seu nome, idade, essas coisas que se perguntam às crianças, mas segui calado, pois tanto quanto ela é, sou mais pensador do que socializador. Queria dizê-la que era linda, que podia ver nos seus olhos o futuro brilhante que a esperava, que tinha um ótimo e amoroso pai (que estava sempre demonstrando preocupação com seu conforto ali na areia), que podia ver o brilho dela, um brilho emanando pureza, inteligência, futura sabedoria, que pessoas assim, que talvez se achem feias quando crianças, estão na verdade trabalhando o interior, o espírito, não espírito do gênero Chico Xavier charlatão, espírito no sentido de consciência, de aprimoramento interior e intelectual, de autoconhecimento. Crianças quietas, caladas, às vezes tristes, tristes com sua aparência, com sua condição solitária, futuramente se tornam pensadoras, artistas, com virtudes eternas, não com preferências fúteis e efêmeras, como a aparência física e externa. Se tornam pessoas de interior belo, para sempre terão nas suas consciências a empatia pelo desolado, pelo tímido e acanhado, mesmo já tendo quebrado essa barreira de socialização que as crianças tanto sofrem no convívio comum com outras crianças, na escola, nas ruas, etc. Claro que, salvo raras exceções de casos de psicopatia, por exemplo.

 Por isso sou o que sou, porque um dia fui sozinho, solitário, triste, desenvolvi em mim pensamentos, não futilidades egocêntricas, tal como as crianças ricas e belas desenvolvem com total apoio dos pais. Os pais nada querem além da felicidade dos filhos, custe o que custar, porém nem sempre o que representa felicidade momentânea é saudável para todo o resto da existência do indivíduo. A criança é um indivíduo, mas às vezes é tratada como uma jóia. Será que não se lembram, os pais, que tudo o que é visto, ouvido, sentido nos primeiros anos de vida, acredito que até uns 12 anos, fica para sempre na nossa memória? Molda definitivamente nossa personalidade, o que somos, mesmo que, com a adolescência, as coisas se confundam e corram o risco de se perderem para sempre, normalmente após os 20 anos, toda aquela experiência de vida dos primeiros anos retorna, definindo de vez nossa existência e personalidade.

 Cuidem de suas crianças, alimentem suas mentes, plantem os valores que lhe são corretos nos primeiros anos, pois estes serão lembrados até o fim de suas vidas.
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